A pandemia transformou a realidade das relações e fez do lar de muitos trabalhadores seu novo ambiente de trabalho.
Embora tenha sido uma situação que se impôs a todos, é necessário analisar com parcimônia o exercício das atividades no ambiente que até então – pelo menos para grande parte dos cidadãos – se destinava à privacidade e ao lazer.
Como no trabalho remoto é natural que cada trabalhador cumpra rotina e jornada de trabalho em horários diversos, tornou-se rotineira a existência de demandas e solicitações sem a limitação existente até então, no antigo protocolar horário de 9h às 18h, com intervalo das 12h às 13h, por exemplo.
Além disso, o uso do aplicativo de mensagens do Whatsapp, por ser uma ferramenta de comunicação instantânea, também facilitou a comunicação entre empregado e empregador. Contudo, foi um poderoso instrumento de vinculação ao trabalho 24 horas por dia e 7 dias por semana!
Tanto o trabalho remoto como as atuais tecnologias de comunicação, se não bem administradas, podem violar o direito ao descanso do empregado e, consequentemente, gerar danos à sua saúde.
Mas em que momento o trabalhador pode – e deve – usufruir seu descanso? Em que momento lhe é assegurado o ‘direito à desconexão’? O que acontece se o empregador não respeita esse direito?
O direito à desconexão (também chamado de pausa, tempo livre destinado ao descanso e lazer) é direito fundamental garantido ao trabalhador e consiste na desvinculação plena do trabalho, seja em período de férias, intervalo intrajornada ou interjornadas.
Nesse período, o empregado decide livremente o que quer fazer ou não, sem ingerência de seu empregador, sendo imprescindível para a higidez física e mental de todo ser humano.
Se o empregador exige, por exemplo, que o empregado mantenha o telefone celular disponível e que deva responder aos chamados, independentemente do horário e dia da semana, está violando o direito à desconexão do empregado mesmo que não faça chamados, pois o empregado não pode descansar de forma plena.
Ou seja, o empregado ficará permanentemente conectado ao trabalho, pois o recebimento de mensagens fora do horário ou até mesmo em período de férias fará com que ele fique sempre alerta, gerando no trabalhador apreensão, insegurança e angústia.
E se isso ocorrer de forma habitual, o empregado poderá até desenvolver uma síndrome de Burnout, um transtorno psicológico em razão do esgotamento profissional https://gfsa.com.br/sindrome-de-burnout-e-considerada-doenca-do-trabalho-2
Dessa forma, embora o trabalho remoto traga maior flexibilidade ao empregado e as ferramentas tecnológicas facilitem a comunicação, o empregador deve ficar atento aos riscos de sua utilização sem qualquer limite, pois além de não propiciar um ambiente de trabalho saudável, poderá ser condenado ao pagamento de horas extras e indenização por dano moral pela violação do direito ao descanso ou, como dito, o direito à desconexão.
Nesse sentido, a recente decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais:
VIOLAÇÃO AO DIREITO À DESCONEXÃO, AO ESQUECIMENTO, AO LAZER, ASSIM COMO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E SOCIAL. DANO EXISTENCIAL. ESPÉCIE DO GÊNERO DANO MORAL. A supressão de tempo para que o trabalhador, na sua condição humana, se realize pessoal, familiar e socialmente é causadora de uma devastação interior. Viver não é apenas trabalhar; é conviver; é relacionar-se com seus semelhantes na busca do equilíbrio interior e exterior, da alegria, da felicidade e da harmonia, consigo próprio, assim como em toda a gama das relações sociais materiais e espirituais, que se expande também para o meio ambiente laboral, potencializando a produtividade e reduzindo os riscos de doenças profissionais e de acidentes de trabalho. Quem somente trabalha, dificilmente é feliz; também não é feliz quem apenas se diverte; a vida é um ponto de equilíbrio entre o trabalho e o lazer, de modo que as férias, por exemplo, constituem importante instituto justrabalhista, que transcende o próprio Direito do Trabalho. Com efeito, configura-se o dano moral, com coloração existencial, quando o empregado tem ceifada a oportunidade de dedicar-se às atividades de sua vida privada, em face das tarefas laborais excessivas, deixando as relações familiares, o convívio social, a prática de esportes, o lazer, a cultura, vilipendiado ficando o princípio da dignidade da pessoa humana – artigo 1º, III, CF. Consoante Sartre, “Ter, fazer e ser são as categorias cardeais da realidade humana. Classificam em si todas condutas do homem” (O Ser e o Nada), sem as quais, acrescento, em sua comunhão, carece a pessoa humana daquilo que o mesmo filósofo denominou de “transcendência-faticidade”. Nos casos de jornadas de trabalho extenuantes, o trabalhador é explorado exaustiva, contínua e ininterruptamente, retirando do prestador de serviços a possibilidade de se organizar interiormente e externamente como pessoa humana, sempre e sempre em permanente evolução, desprezado ficando, de conseguinte, o seu projeto de vida. A sociedade industrial pós-moderna tem se pautado pela produtividade, pela quantidade e pela qualidade, pela multifuncionalidade, pelo sistema just in time, pela competitividade, pela disponibilidade full-time, pela conexão instantânea e permanente, assim como pelas metas, sob o comando, direto e indireto, cada vez mais sutil, porém agudamente intenso e profundo do tomador de serviços, por si ou por empresa interposta. Nessas circunstâncias, consoante moderna doutrina, desencadeia-se o dano moral com conotação existencial, de cunho nitidamente extrapatrimonial.
(TRT-3 – RO: 00105767120165030167 MG 0010576-71.2016.5.03.0167, Relator: Luiz Otavio Linhares Renault, Data de Julgamento: 16/02/2022, Primeira Turma, Data de Publicação: 18/02/2022)
Certo é que o direito a desconexão é fundamental para a higidez física e mental do empregado e pode ficar comprometida quando a empresa não adota critérios definidos quanto aos limites diários de demandas e solicitações.
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Sobre as autoras:
Rokeli Amarante: Sócia do escritório Gelson Ferrareze Sociedade de Advogados. Advogada graduada pela Faculdade Planalto no Rio Grande do Sul; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Escola Paulista de Direito; Pós-graduada em Compliance pelo IBMEC.
Luciane Adam: Sócia-fundadora do escritório Gelson Ferrareze Sociedade de Advogados. Advogada graduada pela Universidade Católica de Pelotas. Pós-graduada em Direito Contratual e Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Concluiu Administração Legal para Advogados, Contract Design e Contratos – Visão Negocial e Prática na Fundação Getulio Vargas.